Corpos e mediações: arte e tecnologia em tempos de pandemia

Por Aline Yuri Hasegawa, Victor Kinjo e Eduardo Colombo

Sinopse do artigo:

Breve avaliação sobre o contexto de produção artística e cultural no contexto da pandemia COVID-19, trazendo o corpo e as relações com as tecnologias de informação e comunicação como eixo de análise.

Originalmente publicado em:

Diálogos urgentes em tempos de incerteza e múltiplas crises. [recurso eletrônico] or ganização Pedro Roberto Jacobi; Rafael de Araujo Arosa Monteiro; Vivian Blaso; Sandra Regina Mota Ortiz.—São Paulo : IEE-USP, 2022.211p: il. 30cm.

ISBN 978-65-88109-10-6

DOI 10.11606/9786588109106

 

http://www.livrosabertos.sibi.usp.br/portaldelivrosUSP/catalog/view/783/697/2584

 

Diálogos Urgentes

Wede’rã Lab: audiovisual practices as boundary spaces and inter-ethnic relations mediation.

Since first contacts with Brazilian State in 1946, the Xavante learned to take into account the non-
indigenous as relevant political element. During the second half of 20th century they mastered
the ways of dealing with the agencies responsible for indigenous issues, which became way of
resources and source of political power and dispute between leaderships.

More recently, anthropologist and artists interested in working with indigenous people also
became part of the Xavante political landscape. The most noticeable form of these new ways of
dealing with the waradzú is the almost mandatory need of a “project” that implies some benefit
for the community, in exchange for developing research among them.

This proposal will present with one of these “projects”, named Wederã Lab. It is a laboratory
for audiovisual production located in the Wederã village, at the Pimentel Barbosa Reserve.
Its existence is due to a network established during the creation of a “Ponto de Cultura” (a
community state funded cultural center) in the village. We propose to think how the laboratory
works as a place for modulating local contact with foreign practices and techniques such as
anthropology and cinema, in order to minimize its danger and undesirable impact, namely
among younger generations. We argue that places such as indigenous cultural centers and
schools work as “boundary spaces” that favor local controlled inter-ethnic relations through
circulation of people, techniques and knowledge.

Keywords: video; boundaries; inter-ethnic relations; xavante

 

 

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Cantos sonhados Danhore

 

As músicas publicadas nessa página foram gravadas na Terra Indígena Xavante de Pimentel Barbosa, no estado do Mato Grosso, na Aldeia Etheniritipá, em abril de 2011, durante o ritual de furação de orelha, realizado em conjunto com os parentes moradores da Aldeia Wederã. Este ritual marca o encerramento de um ciclo de mais ou menos 5 anos, no qual meninas e meninos de um grupo de idade aprendem a viver e se preparam para ocupar novos papeis e assumir novas responsabilidades na máquina social Xavante. Trata-se de um tipo de “formatura”, como gostavam de traduzir para os waradzú que por acompanhar e assessorar a realização do registro filmado, também foram chamados a participar do ritual. A celebração durou 6 meses, ao longo dos quais os formandos foram testados, desafiados a enfrentar situações e condições que todos os que vieram antes enfrentaram e superaram, sendo submetidos a uma série de atividades físicas repetitivas que os expuseram aos extremos do frio, do calor, do molhado, do seco, da fome, do cansaço, levando-os ao limite de suas forças e de seu medo, moldando seus corpos, colocando-os em contato com as forças do cerrado, com espíritos e antepassados.

 

Estas músicas foram cantadas sempre acompanhadas de danças em que padrinhos e formandos se uniam em roda. Uma dessas ocasições, quando foram feitos os registros apresentados nessa página, foi logo após a furação das orelhas dos meninos, numa importante etapa do ritual, um momento de celebração, que teve início nas primeiras horas de Sol, terminando somente após a chegada da noite.  Em mais uma atividade de repetição e exaustão, os membros dos dois grupos de idade cantavam e daçanvam em roda, passando de casa em casa até completar uma espécie de giro pela aldeia, que possui a forma de uma meia circunferência. Um giro, pois sempre na mesma ordem e direção, partindo e retornando ao mesmo lugar, o . Os dois grupos, que ao mesmo tempo se auxiliavam e competiam ao ocupar o papel central do ritual, reuniam-se e, alternando-se, descansavam e ensaiavam a música que seria apresentada para toda a aldeia, como disse, num giro em que a roda era formada uma vez em frente de cada casa, ou grupo de casas, que compõe a aldeia. Aos padrinhos cabia o papel de puxar a fila que saía do Hö e formar a roda. Além disso, ficavam responsáveis por puxar a música e por informar o ritmo da dança que seriam executados em um dos giros completos pela aldeia. Após cada giro completo, todos se recolhiam de volta ao Hö, e um padrinho diferente apresentava a música que seria cantada, assumia a função de puxar a fila novamente e era o primeiro a sair da casa.

 

Cada giro completo pela aldeia e suas 6 apresentações para cada grupo de casas tomava aproximadamente 20 minutos e os giros repetiram-se ao logo do dia inteiro.

 

A escolha da música nunca é aleatória. Seu processo de criação implica em um interessante elemento, smpre presente nos momentos decisivos da cultura Xavante, o sonho. Para ser cantada, portanto, a música precisa ter sido sonhada. Os danhore são cantos recebidos em sonhos individuais, são cantos sonhados. Todas as pessoas podem recebem esses inspirações, inclusive waradzú aliados, desde que tenham alguma fluência na língua e algum conhecimento das tradições. Quando uma pessoa sonha com um canto, ela acorda no meio da noite e o repete para si mesmo algumas vezes, para memorizá-lo. Os cantos guardados serão apresentados para o grupo em ocasiões rituais, como no danhono, depois de passarem por uma seleção que se aproxima de uma curadoria. Isso acontece entre o grupo responsável pela performance, que se reúne fora da aldeia na noite anterior à sua apresentação. Todos os presentes apresentam seus cantos memorizados recentemente para os demais. Então, os melhores cantos são escolhidos, a ordem de apresentação é definida, e os cantos são ensaiados por todos juntos.

 

Através dos sonhos, elementos dos cantos (tema, ritmo…) são transmitidos por antigos parentes, por espíritos ou mesmo por animais. Cada padrinho deve apresentar pelo menos uma música, e tanto no ensaio quanto na execução ele é sempre ajudado por irmãos e primos mais próximos, companheiros do grupo de idade, de forma que cada um sabe também as músicas de alguns dos outros, garantindo uma memória distribuída através de um esquema baseado em redundância.

 

Além dos cantos, os outros elementos sonoros que podem ser escutados nos fragmentos apresentados nessa página são: um chocalho feito de unhas de veado e algumas sementes e plumas que é amarrado pouco abaixo do joelho e usado pelo dono do canto, que puxa a roda dando o ritmo da dança através de seus movimentos, uma batida feita com o pé, que é jogado com a força do peso do corpo sobre a terra sendo em seguida arrastado. E um chocalho fei to com cabaça, que é usado no Hö para puxar o canto, e durante a dança fica pendurado nas costas, através do pescoço. O ritmo da dança e do canto são complementares dando a sensação de que se trata de um só movimento de vibração, que deriva do intervalo entre o primeiro passo de quem informa o rítimo, e tempo necessário para que este movimento seja mais do que copiado, seguido pelos outros elementos da roda.

 

Durante a realização das apresentações, os parentes e visitantes de outras aldeias posicionados cada qual em suas casas e nas casas que os hospedavam, se divertiam, se orgulhavam de filhos e netos, avaliavam a beleza das pinturas, a força do canto, a firmeza da postura, a entrega ao movimento. E também faziam seus próprios registros através de celulares, tocadores de mp3 e gravadores k7.